Cinderela,

É verde. Sim, é uma rapariga e é verde. É verde assim como poderia ser azul ou roxa ou de outra cor qualquer. Mas não. É verde e ponto final. Nasceu assim. É assim que se vê. É assim que os outros a vêm. Um dia o pai dela entrou no seu quarto e olhando para aquela decoração, e olhando para aquela rapariga disse: Pareces uma lagarta nas couves. Ela nem ligou, o pai nunca a tinha entendido muito bem. Aliás, o pai entendia pouco das coisas, pelo menos daquelas que eram importantes. Ela com o tempo também deixou de o tentar entender. É que o pai era assim como as fadas madrinhas, tentava fazer tudo, mas acabava sempre por não fazer aquilo que era essencial, falhava naquilo que não devia falhar. Uma vez a fada madrinha apareceu. Muito apressada, muito atarefada. Sim, porque todas as fadas madrinhas vivem apressadas e atarefadas. Ela nem deixou a rapariga verde falar, viu uma lágrima no seu rosto e achou que sabia, que podia resolver tudo. Escusado será dizer que não podia. Mas ela não ligou e mil pós brilhantes voaram pelo ar. Apareceu uma carruagem, apareceram cavalos (que importava que estivéssemos no século XXI?), apareceu o mais belo vestido acompanhado de sapatos de cristal. 'Pronto, já podes ir ter com o teu príncipe'. Ela não teve coragem, não teve forças para admitir que não havia príncipe – que o príncipe que tinha existido a tinha deixado - não foi capaz de admitir que sim, era uma rapariga verde e estava sozinha. Vestiu o belo vestido e subiu para a carruagem. A fada madrinha ainda lhe acenou, um sorriso de felicidade desenhado na sua face, tal e qual os do seu pai. Ela partiu para parte incerta. Sem príncipe. E nunca mais ninguém soube dela. É que sabem, no fundo já não existem finais felizes. Apenas raparigas verdes, abandonadas, com sapatos de cristal.

um sonho,

Ainda pensas em mim? Já não se reconhece no espelho, já não consegue encarar ninguém, olha o mundo e só vê futilidade, sente que tudo perdeu a razão. Já não me reconheço no espelho. Que coisa horrível, olho-me no espelho mas não entendo, não sei quem me devolve o olhar. O professor de filosofia continua a dizer-me que não posso confiar em nada, que todas as minhas crenças podem ser mentira. Mas será que posso confiar nele? Talvez fosse melhor tirar o chapéu de filósofa e encarar o mundo como toda a gente ou quem sabe, talvez ignorar o mundo. Tantas perguntas. Às vezes acho que prefiro as perguntas dos testes, dos exames. Que estranho? Não, é que por muito difíceis que pareçam pelo menos todas essas perguntas têm resposta. E eu já não encontro respostas, só perguntas, só pontos de interrogação. Como quando estamos a sonhar e alguém não tem cara, só têm um ponto de interrogação no lugar onde deveria estar a sua face. E eu fico sem saber quem é, quem era… E ninguém me responde a nada. Por exemplo, ainda pensas em mim? Continuas a sentir-te bem quando estás comigo? Ainda encostas a cabeça no banco do carro e fechas os olhos quando ouves uma das nossas músicas? Ou será que agora a única pessoa que inunda os teus pensamentos e sonhos é ela? Oh, mas eu tinha tudo controlado, tinha o comando, aquele que desliga e liga os meus sentimentos por ti na mão. Mas sei lá, estava a demorar tanto a chegar aquele momento, o tal em que eu usava o comando para não me magoar, que eu acabei por deixá-lo esquecido por aí. E agora bem quero desligar-me de ti mas não sei do comando e não sei parar, não consigo parar de pensar em ti. Não me reconheço no espelho, o mundo está vazio, não devo confiar em ninguém, tantas perguntas, nada. Tudo o que vejo são homens em gabardinas pretas, pontos de interrogação no lugar do rosto, uma frase desenhada com fumo no céu, talvez por um avião. ‘Ainda pensas em mim?’, E eu sem me conseguir mexer, falar, gritar. Que silêncio.
Será que estou a sonhar ?