o passado,

Parece estranho que ao tropeçar numa caixa cheia de folhas soltas se vá de encontro a toda uma outra vida, a toda uma outra existência que parece tão distante que, pensamos, decerto nunca nos pertenceu. Não reconheço os momentos descritos em tais páginas nem tão pouco a caligrafia desastrada. Até que reparo melhor, tiro por momentos o meu chapéu revestido de superioridade e idade e tento ver, mas ver mesmo, procurar algo que me faça entender que palavras estranhas são essas. E é aí que, ao ver, mas ver mesmo, começo a reconhecer algumas coisas. Um ou outro pensamento, uma ou outra personagem, um ou outro sentimento. Entendo por fim. Sou eu, sou eu que estou perdida nesta caixa cheia de folhas soltas. Não, não sou eu mas sim quem eu já fui. E, de repente, bate uma dor cá dentro. Uma dor tão grande. Nunca me tinha apercebido de tudo o que tinha guardado, escondido. Já não me lembrava, já não me queria lembrar que pessoas que hoje passam por mim e não dizem nada, em tempos me fizeram juras eternas, me prometeram que estariam sempre presentes e que nada, nada nos iria separar. Retorno à frase já gasta, estou farta de promessas e de falsas esperanças, porque é que não podemos todos voltar a ser crianças? Parece impossível, é impensável sugerir sequer que tais pessoas já foram parte de mim. Não, de mim não, daquele eu que agora está perdido na tal caixa, cheia de folhas soltas. É engraçado que se possa tropeçar assim numa outra vida, numa outra existência. E ficam no ar as tuas perguntas. 'Porque é que as coisas mudaram? Estão melhor ou pior?' e a única certeza que tenho é de que não possuo a resposta a tal pergunta, se é que possuo alguma resposta. Já nem me lembrava do significado da palavra saudade, mas não creio que me volte a esquecer. É, uma vez aberto o armário das recordações e das memórias torna-se difícil fechá-lo. E a verdade é que sinto saudades. Minhas, tuas, vossas, nossas.

infinito,

Ela lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus lábios uniram-se num beijo profundo, infinito, quase imaterial pelo seu êxtase. Depois, descerrou lentamente as pálpebras, e disse-lhe, muito baixo:
- Adeus, deixa-me só, vai.
Ele tomou o chapéu, e saiu.

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. A caneta vai tentando, carregada de nostalgia, contar a nossa história ao papel. Sempre usei a escrita como catarse, mas só agora consegui encontrar a força necessária para falar de ti sem as lágrimas me turvarem a visão. As minhas coisas estão agora dentro de caixas. As tuas vão ficar para trás. Não consigo continuar a viver nesta casa. É demasiado tua, é demasiado nossa Ainda me é difícil entender porque partiste, abandonando todos os nossos sonhos. Mas como tu costumavas dizer, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Eu acabei por me habituar ao sofrimento, até porque este faz parte da espécie humana, faz parte de cada singular pedaço de mim. Não irias gostar de sabê-lo, mas continuo a não acreditar no conceito de felicidade. Felizes podem ser, talvez, os besouros. Esse conceito é tão utópico, meu deus. E eu nunca gostei de utopias. Desculpa, mas não tenho palavras para ti, não há palavras que consigam conter esta saudade. Posso apenas dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói. E dói de tal maneira que já pensei juntar-me a ti apesar de saber que não o posso fazer. Ficarias possesso de raiva se eu desistisse desta minha existência maltrapilha, incompleta, desfeita. É claro que poderia fingir-me louca, poderia fingir julgar que podia voar, poderia atirar esta minha suposta existência – maltrapilha, incompleta, desfeita – de uma falésia. Não, não poderia. Jamais me perdoarias. Mas também tu me falhaste numa promessa. Disseste que estarias sempre ao meu lado. Não estás. Não sei onde estás. Não sei para onde foste. Não sei nada. Acho que o melhor é deixar estar calado o meu coração.

- Adeus, deixa-me só, vai.
Ele tomou o chapéu, e saiu.
Na manhã seguinte, morreu.

P.S. Este texto possuí excertos das obras: Os Maias (Eça de Queirós); Antes de Começar (Almada Negreiros); Aparição (Vergílio Ferreira) e Pedro, lembrando Inês (Nuno Júdice) assim como de um artigo da revista Única.

Algumas proposições sobre crianças

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz.

Ruy Belo



A verdade é que estou farta de promessas e de falsas esperanças. Porque é que não podemos todos voltar a ser crianças?


P.S. A nova imagem presente no blog é da autoria do Nuno. Muitíssimo obrigada por todo o apoio e dedicação (':