outros tempos,

Levantou-se a custo, sabendo já que seguiria sozinha para fora do lar, como acontecia desde há algum tempo, tempo demais na sua opinião. Cambaleou até à janela, onde se encostou, enquanto ajeitava a camisola já gasta da qual não se conseguia livrar. Observou o frenesim matinal das ruas. Autênticos robôs, era isso que ela pensava daquela gentinha chata restringida por horários e responsabilidades.
Tomou um duche rápido com esperança que a água levasse qualquer vestígio tanto dos sonhos como dos não-sonhos. Largou a toalha no chão, manchando-o com as gotas que deixavam o seu corpo, e procurou algo para vestir no armário completamente desarrumado. Talvez um dia tivesse paciência para dobrar todas as peças de roupa, talvez até organizá-las por estações, ou quem sabe por cores. Riu-se dos seus pensamentos. Como se algum dia o fosse fazer. Pegou numas quaisquer calças de ganga e numa camisola preta. Calçou as sapatilhas, umas all star, como sempre. Quando crescesse, se crescesse, teria tempo para os desconfortáveis saltos altos. Por enquanto gostava de ter os pés bem assentes na terra. Secou o cabelo, lavou os dentes. Não gostava de maquilhagens e afins, faziam-lhe comichão, dizia ela. Não se olhou sequer ao espelho, evitava-o tanto quanto possível, era assim desde sempre. Agarrou a mala e um casaco, o mais quente de todos, porque às vezes também precisava de se sentir aconchegada, e saiu de casa.
Dirigiu-se para o trabalho, tomando o cuidado de não seguir o caminho do dia anterior. Detestava rotinas. Entrou num Starbucks e fez o seu pedido, bebendo-o enquanto apressava o passo. Estava atrasada, estava sempre. Felizmente a sua profissão permitia-lhe essa falha. Era psicanalista, tinha um talento natural para ouvir, entender, aconselhar. Conseguia perceber sempre o que estava mal em qualquer pessoa, em qualquer um, excepto quando esse mal recaía sobre si própria. Ou talvez até se percebesse, mas era tão dura e ríspida consigo, que nunca estava satisfeita. Nunca era quem quem queria ser. Nunca era suficiente. Apesar de tudo, esta era apenas mais uma razão para adorar a sua carreira pois permitia-lhe desligar-se e, principalmente, esquecer-se de um certo artista.
Cumprimentou a secretária com o seu melhor sorriso, pedindo-lhe que deixasse entrar o primeiro paciente dentro de cinco minutos, encaminhando-se depois para o seu escritório. Fechou a porta atrás de si e encostou-se à mesma, esforçando-se por não escorregar até ao chão. Ergueu a cabeça para o céu, cinzento nessa manhã, que conseguia ver devido à existência de uma clarabóia, e fechou os olhos, contendo quaisquer lágrimas que tencionassem escapar. Por vezes era difícil manter a sua máscara de mulher bem sucedida e feliz. Sentou-se na sua cadeira de um tom encarnado escuro e encarou as paredes forradas com livros, grandes obras que a haviam marcado por esta ou aquela razão. Nos cantos, enormes vasos com girassóis. Impressionante como uma simples flor a conseguia fazer sorrir, talvez por ser tão robusta e, no entanto, tão bela. Finalmente, o divã captou a sua atenção e, percebendo que os seus cinco minutos escasseavam, suspirou e recompôs-se. Era apenas mais um dia.

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