You can't play on broken strings
You can't feel anything
That you heart don't want to feel
I can't tell you something that ain't real
You can't feel anything
That you heart don't want to feel
I can't tell you something that ain't real
Antes de mais tenho de criar uma situação, certo? Sim, porque eu engendro sempre um cenário detalhado para embrulhar o que sinto. Já Pessoa dizia, o poeta é um fingidor. E que poeta seria eu se não brincasse também com as palavras? Se não tentasse pôr um pouco de cor nesta história que se me afigura tão negra? Ainda para mais, acho os (meus) sentimentos a frio muito mais feios, despidos da possibilidade de deslumbrar. Enfim, onde estava eu? Ah, embrulhar, ser outro alguém. Tal como Pessoa que conseguia a difícil arte de ser pessoas. Ora, é isso, hoje, presunçosamente, cometo uma loucura, hoje - se o engenho mo permitir - atrevo-me a ser Fernando Pessoa em toda a sua peculiar silhueta e genialidade. Hoje sou eu que, coberto de preto e rigor, crescentemente melancólico, troco umas palavras de circunstância enquanto puxo da garrafa que guardo religiosamente na pasta de cabedal. Dirijo-me ao senhor Trindade, enigmaticamente, que me entrega os fósforos, os cigarros e a garrafa atestada de bagaço. Agradeço então, com esta voz de catarro, as palavras cortadas aqui e ali pela tosse. Subo, por fim, as escadas que conduzem ao meu mundo de papéis, personagens e fantasmas nocturnos. Sobre a secretária, Ofélia, requintamente emoldurada. Ao lado, uma carta da mesma que - e relembro que nada disto é real - leio com cuidado.
'Não sou mais que um segredo. Nunca fui algo tão triste e trágico, fizeste de mim uma secreta verdade. Alguém um dia disse que a melhor forma de esconder algo é à vista de todos. E foi assim que me escondeste, ao teu lado, onde qualquer um me pode ver. Mas nunca um beijo, nunca uma palavra ou gesto de amor foi trocado, a não ser quando sozinhos, a não ser quando em segredo. Sabes, por ti ganhei esperança e coragem. O meu velho pai sempre me disse para nunca dar à luz num mundo que não pode albergar mais crianças, para não despejar mais almas em algo sem futuro. Eu não pude dizer que não, não havia argumentos que o contradissessem. Porém, tu querias ser pai. E mais que aceder ao teu pedido, eu mudei a minha filosofia de vida. Por muito egoísta que esse acto fosse, passei também eu a desejar uma criança. Estava disposta a aguentar meses de sofrimento e horas de dor. Por ti, por mim, por nós. Por algo criado à tua imagem e que permaneceria comigo, ainda que um dia me deixasses, fechando o segredo. Só mais tarde descobri que existiam outros segredos. Não me devias nada e ainda assim senti-me magoada. Não me eras nada e ainda assim senti-me traída. Recordações que não me pertenciam perturbavam-me os sonhos. Sentia um aperto no coração, em todos os momentos. E ansiava, perdida, pelo esquecimento. Queria apagar aquele episódio da minha vida. Mas esquecer, esquecer é uma mentira. Esquecer é uma promessa falhada a partir do momento em que é feita. O coração nunca esquece, apenas podemos implorar à mente que vagueie por outros assuntos menos dolorosos. Se algum dia, algures no ontem, me imaginasse em tal cenário, não julgaria possível caber ainda no meu peito qualquer réstia de amor. Contudo, esse sentimento ainda me inunda e ainda é por ti que bate o meu coração. Apesar de toda esta mágoa, o que queria era deitar-me, abraçada a ti, e chorar, chorar até as lágrimas secarem e o silêncio, entrecortado pela nossa respiração, se tornar tão ensurdecedor que não me reste mais nada senão adormecer. Deixar de existir, mesmo que apenas por alguns momentos. Mas a tua ausência faz-se notar mais uma vez e, agarrada a coisa nenhuma, deixo-me estar, segurando o choro. Devo-te dizer que estranhei, acima de tudo, quando afastei a cortina da janela, libertando-me da escuridão do meu casulo, e vi que o sol ainda brilhava. A luz do mundo exterior magoou-me os olhos e provocou-me dores de cabeça. O trânsito de fim de tarde fazia-se sentir lá em baixo. Um número sem fim de pessoas tentava, a custo, alcançar o seu lar, entretidas pela música vulgar da rádio. Como era possível que o mundo continuasse com a sua monótona e constante rotina quando eu me sentia a desaparecer? Vesti-me de preto. Estava de luto pelo meu amor. O sentimento, não a pessoa. Que negrura tão falsa, amava-te tanto ou mais que no primeiro dia. Sofro, mais do que nunca, por ter a certeza que a minha existência não veio alterar em nada este mundo. Sei agora que o homem que amo e por quem luto, não sente nada por mim, que preferia nunca se ter cruzado comigo. Não me apetece sequer falar. A minha voz lembra-me que estou presa a este corpo inútil que tu não conseguirás nunca amar e que está destinado a não ser mais que um segredo. Por isso, já sabes, se perguntarem por mim não estou.'
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
- Chega Inês, chega de palhaçada.