fim ainda por definir,

- Que voz é essa? Que se passa?
- Nada.
- Conta-me.
- Pronto, estou um bocadinho triste.
- Porquê?
- Por causa do filme.
- O que tem?
- Demasiado romantismo e historinhas bonitas.
- E daí?
- Deixam-me em baixo, é mais forte do que eu.
- Mas porquê? Não me tens a mim?
- Tenho, mas é diferente.
- Porquê?
- Porque não me amas.
- Mas gosto muito de ti.
- Eu sei... Eu sei. Vá, conta-me lá o teu dia.
(...)


Envolvo o meu corpo com o meu fato encarnado preenchido com lantejoulas. Espalho o pó de arroz no rosto e cubro os lábios com um tom de cereja. Polvilho-me com algumas purpurinas e fecho a porta já gasta do meu camarim. A voz que antecede a minha entrada já se faz ouvir do outro lado da minha solidão
- Esta noite, convosco, no nosso fantástico circo, um número no trapézio nunca antes visto.
Faço a rotineira vénia e solto o meu melhor sorriso. Subo, desta forma, as escadas sem fim que levam ao dito espectáculo sem igual, sabendo de antemão que nada lá em baixo impedirá uma possível queda. Um número sem rede, é isso que o público quer. É isso que o amor é. Agarro o trapézio com força e fecho os olhos, sentindo o ar e a magia a fustigar-me o cabelo enquanto balouço. Não vale a pena ver o que me espera. Os teus braços devem estar estendidos para me agarrar e terás um sorriso travesso no rosto, o olhar brilhante, como quem diz
- Estou aqui, vou estar sempre.
Conheces-te tão mal. Sei que bastará um fato mais exuberante num corpo melhor desenhado para te roubar de mim. Um pouco mais de lantejoulas, purpurinas e brilho. Mas enquanto não me deixas temos um número para fazer. A audiência já sustem a respiração e o rufar dos tambores ecoa, é o momento de largar o trapézio. Perco-me no ar e na tal magia, não sinto quaisquer braços, um grito preso, o brilho apanhou-te.
- Nunca foste!
Suba-se o pano, o espectáculo tem de continuar, mesmo que o coração se tenha perdido para sempre, num número sem rede.
Qual quê? Hoje... Céus, como detesto a palavra hoje. Prefiro o ontem. O ontem já passou, o ontem já lá vai, o ontem já não dói. É tão mais simples. Mas enfim, hoje, hoje não há cá palavras todas bonitas nem pinturas sobre o negro. Não tenho força nem alento para estar pr'aqui a embrulhar o que sinto. É o que sinto e é tudo! Quero lá saber que os meus sentimentos a frio sejam feios. Que esperavam? São sentimentos. Se fizer de mim uma trapezista e da minha história um número de circo o meu coração não vai doer menos. São sentimentos e fazem doer, são feios. Não vejo sentimentos bonitos há tanto tempo que, julgo, já nem reconheceria um, mesmo que este me viesse bater à porta, todo perfumado e bem penteado e dissesse
- Sou um sentimento bonito.
Eu provavelmente fechar-lhe-ia a porta na cara aprumada e seguiria com a minha vida, murmurando algo sobre como os sentimentos feios que por aí andam acreditam que nos podem enganar com algum gel e água de colónia. Qual quê? O amor, sentimento dito bonito, não bate à porta, entra de rompante e sem permissão, é um sentimento mal educado. Tornou-se feio também. Tornou-se feio quando deixaste de me beijar e de me chamar bebé e de dormir abraçado a mim e de ser meu. Qual quê? Nunca foste meu, nunca serás, nunca foste. Nunca foste! Se o disser muitas vezes pode ser que o meu coração se convença. O mesmo acontece com a felicidade. Li uma vez que se repetirmos muitas vezes
- Sou feliz
acabaremos por sê-lo, ou, pelo menos, a acreditar que sim. Essa não é, porém, a minha prioridade neste momento. Primeiro devo interiorizar que não és meu. Nunca foste! Tenho, assim, de tomar esta verdade - irrefutável, irrecusável - como um comprimido e rezar - rezar, logo eu que não acredito nessas fantasias - para que não me fique presa na garganta. O bichinho do ciúme que me corrói por dentro tem de desaparecer. Tenho de me curar deste amor. Nunca foste!
Estou sentada em frente à lareira, numa cadeira vermelha e pequenina de quando ainda era criança. Está pálida, velha e gasta. Realmente, o tempo não perdoa. Estou sentada em frente à lareira com a cabeça baixa, tentando aquecer este coração. Pálido, velho, gasto. Tenho de lhe dar corda com frequência e mesmo assim não bate muito depressa, quanto mais com muita emoção. Oh, este meu pobre coração. A minha irmãzinha ajoelha-se ao meu lado. Arrependo-me agora de ter gritado com ela há pouco, sendo que não tem culpa nenhuma do meu sofrimento. Pergunta-me baixinho, a medo
- Não gostas de mim?
- Gosto, é claro que sim, tonta - respondo-lhe, abraçando-a.
É de mim que não gosto, acrescento em pensamento. Não gosto de mim, é um facto. Sinto-me deslocada em qualquer ambiente e o único adjectivo que sei devolver ao espelho é monstro. Que rainha do drama sou. Mais uma vez tenho ganas de mim própria, gostava de ser mais prática e de não estar tão embrenhada neste novelo de sentimentos. Queria conseguir passar pelos teus lábios encostados a outra boca sem o meu coração falhar qualquer batida e que o mesmo não me tentasse saltar do peito ao mais pequeno toque vindo de ti. Sim, queria um coração com um só ritmo, um coração que não fosse teu. Não passo de uma menininha sensível, como me chamas, quem me dera ser mais terra-a-terra. Não me amas, tudo bem, eu aceito-o. Um dia também deixarei de te amar e não serás mais que uma fotografia antiga no meu álbum de recordações, apenas um rosto sem nome. E, no entanto, a sensação de que a frase 'um dia também deixarei de te amar' não se encontra em futuro algum, quanto mais num amanhã próximo. Não possuo a capacidade de esquecer. Sou uma peça com muitos defeitos sendo esse o mais trágico. Não sei deixar para trás nem seguir em frente. Vivo de costas voltadas para o futuro, olhando com saudade quem fui outrora. E o pior é que não sei sequer se fizeste de mim alguém melhor ou não. Melhor, gosto de acreditar que sou alguém melhor. Mas quando o meu telemóvel vibra e
- 68634: Quase. Para ser franco, ele não gosta de ti.
ilumina o ecrã, percebo que não posso estar, de todo, bem. Tão desesperada e confusa ando que dou por mim a perguntar a programas de televisão inúteis o que raio sentes tu por mim. Passo o meu tempo a arquitectar planos para te tornar meu, sabendo desde o início que o meu maior erro estratégico foi deixar que soubesses o que significavas para mim. Confessei-me apaixonada pelo lobo e ainda me pus na sua boca. Sabes bem que podes fazer o que quiseres de mim e que te seguiria até ao fim do mundo, se quisesses. Não queres. Talvez seja altura de dar esta história por terminada, guardar-te na gaveta e categorizar-te como um pretérito mais-que-perfeito. Qual quê? Nunca foste! Mas serás sempre. E o coração jaz perdido, após um número de circo sem rede.
(amo-te, é tudo)