soulmate,

Who doesn't long for someone to hold
Who knows how to love you without being told
Somebody tell me why I'm on my own
If there's a soulmate for everyone


Quero amor. Não um qualquer amor vulgar, não. Quero um amor como nunca houve em peça ou filme algum. Quero um amor digno de recordar por várias e diversas gerações. Quero um amor que queime com um simples toque, que desperte as minhas borboletas adormecidas interiores e me faça tremer de emoção. Ai, pensamentos idiotas de uma romântica incurável, demasiado presa aos contos dos livros e, por conseguinte, demasiado desiludida com a frieza da vida. Tento focar-me em algo concreto para me afastar da falsidade dessa coisinha bonita a que chamam amor - essa tal que já nem sei se, de facto, existe. Dou por mim a fitar um gesto mecânico de um estranho, do outro lado da sala. Observo a forma como o cigarro se encaixa na sua mão, o leve movimento que faz quando o leva à boca, o contorno dos lábios enquanto o puxa para, depois, expulsar o fumo, largando as cinzas com um toque. Por alguma razão que desconheço este ciclo prende-me, logo a mim, que sempre abominei e repeli esse vício do tabaco. No entanto, acho a expressão de desinteresse deste indivíduo profundamente atraente e os seus olhos, algo frios e distantes, chamam-me. Mordo o lábio num gesto involuntário e inspiro a neblina, provocada pelo mesmo, e que chega, indistinta até mim. Esta minha reacção não lhe passa despercebida, demonstrando que não está tão alheio a tudo como quer transparecer. Levo o copo à boca e esvazio o seu conteúdo, o álcool unindo-se ao meu corpo. Do outro lado, o cigarro liberta-se mais uma vez, das já gastas cinzas. Este gesto tornou-se agora tão constante como o tiquetaque do relógio, quase como se o centro do universo se tivesse, por instantes, concentrado dentro daquelas paredes nuas. O meu telefone toca subitamente, lembrando-me que existe algo mais que este momento e estes joguinhos de sedução que por algum motivo tanto me cativam. É sinal de que me devo ir embora e deixar-te. Deixar-te? Desde quando trato por tu - ainda que apenas em pensamentos - personagens estranhas com os quais não troquei mais que meros olhares? E por falar em olhares, o teu perde agora a frieza inicial, como que se apercebesse do que se passa e pedindo-me que não vá. As minhas pernas falham por segundos e não sou capaz de qualquer movimento. Descansa, está tudo bem. Compra mais um maço de vício, fuma-me mais um pouco.
Sinto-me um nada. Estarei, por fim, a sucumbir à insanidade? Pergunto-me se algo do que digo fará algum sentido, se merecerei ou não ser ouvida, se esta minha existência será nula. Olho para a folha rabiscada à minha frente. Não me faltam os sentimentos mas sim as palavras. Não existe pedaço de papel em que caiba tamanha angústia. Não há conceito que suporte tal dor. Nunca algo será capaz de albergar a fragmentação em que me encontro. Desisto, amachucando esta tentativa inútil de desabafo e atirando-a para longe, ouvindo-a depois a percorrer o chão até embater em algo. O som da casa agora que não estás arrepia-me e dá-me medo. O frio tornou-se um companheiro constante. Os meus suspiros ecoam nas paredes vazias. Às vezes, julgo ouvir os teus passos nos corredores. Mas são apenas os fantasmas das recordações - a minha mente pregando-me uma partida - para que não me sinta tão sozinha. Isto, que antes era um lar, o nosso porto de abrigo e o nosso refúgio secreto, tornou-se agora apenas um amontoado de tijolos, pedras que não significam coisa alguma. Eu já não significo coisa alguma. Como pude entregar-me assim a um estranho? Porque é que lhe dei tantos anos da minha vida, apagando parte de mim, em troca de um sentimento tão tosco como o amor? Tenho ganas de mim mesma. A imagem que o espelho me devolve dá-me náuseas. Quero pegar neste sentimento que me inunda e arrancá-lo de mim. Cuspir esta paixão. Vomitar até não sentir mais. Nada. Desejo esvaziar-me de ti e de nós, ainda que, ao fazê-lo, esteja a extrair de mim a única beleza que ainda resiste neste meu rosto pálido e cansado. Sinto-me um fantasma do passado. Uma sombra ténue e fraca do que fui outrora. É como se tivesse posto a minha vida em piloto automático. Já nada é sentido. Chego ao fim de horas sem me lembrar do que fiz, se é que fiz algo. Abandono o meu corpo e perco-me em mim mesma por períodos indeterminados. Entrei num estado de profunda apatia. Nada significa nada. Nada é nada. Desliguei-me, pura e simplesmente. Nem sei se é normal que enquanto tudo me grita
- Esquece-o ,
ele se vá apoderando cada vez mais do meu incauto coração. Por vezes, penso que isto não passa de mais uma paixão adolescente, uma espécie de amor de verão travesso que se deixou ficar um pouco mais, um daqueles romances que nos prendem a respiração de tão reais e vívidos que parecem. Repito, parecem. Simples mistérios de faz-de-conta. Parvoíces sem noção às quais jurei nunca me entregar. E agora dou por mim dentro de uma - a viver uma - que me consome as entranhas e me faz indagar, a quem me conseguir responder, se existirá vida depois dele. Se existirá vida depois de ti, meu amor. Se será possível viver sem ti, o homem que me fez feliz sem sequer saber. Se conseguirei não sucumbir sabendo que não tornarás a esta casa. Se serei capaz de voltar a ter em mim algo que se assemelhe a uma vida, quando o meu futuro se foi embora quando partiste. E todas as promessas como
- É contigo que vou casar,
e as juras como
- Nunca te irei deixar,
desvaneceram-se como a neblina do tabaco que fumavas da primeira vez que te vi. Eu era a Special One, lembras-te? Sei-o e sei-o tão bem que dói cá dentro. Hoje, desperto e não te vejo. Já não aqueces os lençóis nem tão pouco o meu coração. O leito que era nosso tornou-se apenas e insuportavelmente meu. Na realidade, amei o homem mais distante de mim que foi possível conceber, e nessa distância o mais próximo, se o mais próximo é o que sonhamos e não aquilo que estamos destinados a ter. Perguntei-te, já quando os dias eram mais cinzentos
- Isto é o fim?
ao que não me soubeste dar resposta. Eu não me preocupei, devia lidar com o horror quando e se se tornasse real, não havia porquê torturar-me com hipóteses obscuras. Nós íamos deixar para trás aquela ervilha que nos incomodava, no fundo dos infinitos colchões e colchas. Afinal, era isso que fazíamos, certo? Sobreviver. A todas as tempestades e trovões das brigas e discussões. A todas as palavras feias e cruéis, criadas para ferir, que desapareciam com um sincero pedido de desculpas e um beijo urgente. Até ao dia em que te foste embora, deixando a tempestade e as palavras feias pendentes no ar - incapazes de desaparecer por si só - e uma porta aberta, que eu não tive nunca coragem de fechar.

segredo,


You can't play on broken strings
You can't feel anything
That you heart don't want to feel
I can't tell you something that ain't real

Antes de mais tenho de criar uma situação, certo? Sim, porque eu engendro sempre um cenário detalhado para embrulhar o que sinto. Já Pessoa dizia, o poeta é um fingidor. E que poeta seria eu se não brincasse também com as palavras? Se não tentasse pôr um pouco de cor nesta história que se me afigura tão negra? Ainda para mais, acho os (meus) sentimentos a frio muito mais feios, despidos da possibilidade de deslumbrar. Enfim, onde estava eu? Ah, embrulhar, ser outro alguém. Tal como Pessoa que conseguia a difícil arte de ser pessoas. Ora, é isso, hoje, presunçosamente, cometo uma loucura, hoje - se o engenho mo permitir - atrevo-me a ser Fernando Pessoa em toda a sua peculiar silhueta e genialidade. Hoje sou eu que, coberto de preto e rigor, crescentemente melancólico, troco umas palavras de circunstância enquanto puxo da garrafa que guardo religiosamente na pasta de cabedal. Dirijo-me ao senhor Trindade, enigmaticamente, que me entrega os fósforos, os cigarros e a garrafa atestada de bagaço. Agradeço então, com esta voz de catarro, as palavras cortadas aqui e ali pela tosse. Subo, por fim, as escadas que conduzem ao meu mundo de papéis, personagens e fantasmas nocturnos. Sobre a secretária, Ofélia, requintamente emoldurada. Ao lado, uma carta da mesma que - e relembro que nada disto é real - leio com cuidado.
'Não sou mais que um segredo. Nunca fui algo tão triste e trágico, fizeste de mim uma secreta verdade. Alguém um dia disse que a melhor forma de esconder algo é à vista de todos. E foi assim que me escondeste, ao teu lado, onde qualquer um me pode ver. Mas nunca um beijo, nunca uma palavra ou gesto de amor foi trocado, a não ser quando sozinhos, a não ser quando em segredo. Sabes, por ti ganhei esperança e coragem. O meu velho pai sempre me disse para nunca dar à luz num mundo que não pode albergar mais crianças, para não despejar mais almas em algo sem futuro. Eu não pude dizer que não, não havia argumentos que o contradissessem. Porém, tu querias ser pai. E mais que aceder ao teu pedido, eu mudei a minha filosofia de vida. Por muito egoísta que esse acto fosse, passei também eu a desejar uma criança. Estava disposta a aguentar meses de sofrimento e horas de dor. Por ti, por mim, por nós. Por algo criado à tua imagem e que permaneceria comigo, ainda que um dia me deixasses, fechando o segredo. Só mais tarde descobri que existiam outros segredos. Não me devias nada e ainda assim senti-me magoada. Não me eras nada e ainda assim senti-me traída. Recordações que não me pertenciam perturbavam-me os sonhos. Sentia um aperto no coração, em todos os momentos. E ansiava, perdida, pelo esquecimento. Queria apagar aquele episódio da minha vida. Mas esquecer, esquecer é uma mentira. Esquecer é uma promessa falhada a partir do momento em que é feita. O coração nunca esquece, apenas podemos implorar à mente que vagueie por outros assuntos menos dolorosos. Se algum dia, algures no ontem, me imaginasse em tal cenário, não julgaria possível caber ainda no meu peito qualquer réstia de amor. Contudo, esse sentimento ainda me inunda e ainda é por ti que bate o meu coração. Apesar de toda esta mágoa, o que queria era deitar-me, abraçada a ti, e chorar, chorar até as lágrimas secarem e o silêncio, entrecortado pela nossa respiração, se tornar tão ensurdecedor que não me reste mais nada senão adormecer. Deixar de existir, mesmo que apenas por alguns momentos. Mas a tua ausência faz-se notar mais uma vez e, agarrada a coisa nenhuma, deixo-me estar, segurando o choro. Devo-te dizer que estranhei, acima de tudo, quando afastei a cortina da janela, libertando-me da escuridão do meu casulo, e vi que o sol ainda brilhava. A luz do mundo exterior magoou-me os olhos e provocou-me dores de cabeça. O trânsito de fim de tarde fazia-se sentir lá em baixo. Um número sem fim de pessoas tentava, a custo, alcançar o seu lar, entretidas pela música vulgar da rádio. Como era possível que o mundo continuasse com a sua monótona e constante rotina quando eu me sentia a desaparecer? Vesti-me de preto. Estava de luto pelo meu amor. O sentimento, não a pessoa. Que negrura tão falsa, amava-te tanto ou mais que no primeiro dia. Sofro, mais do que nunca, por ter a certeza que a minha existência não veio alterar em nada este mundo. Sei agora que o homem que amo e por quem luto, não sente nada por mim, que preferia nunca se ter cruzado comigo. Não me apetece sequer falar. A minha voz lembra-me que estou presa a este corpo inútil que tu não conseguirás nunca amar e que está destinado a não ser mais que um segredo. Por isso, já sabes, se perguntarem por mim não estou.'

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

 
- Chega Inês, chega de palhaçada.

only exception,

Ao agarrar a maçaneta, sabendo que estavas do outro lado da porta, o meu coração bateu mais forte. E foi aí, quando a minha vida se tornou uma novela melosa de fim de tarde, que me apercebi que estava irremediavelmente apaixonada por ti.
Já não havia nada a fazer, pensei. Tal e qual uma trágica comédia romântica barata, também eu tinha logo de apaixonar pelo único rapaz que nunca iria sequer olhar para mim. O meu príncipe não tão encantado. Tu. Tu que me pedes que não te tome como certo. És instável, eu sei. Já perdi a conta às vezes em que quase disseste que me amas. Mas as palavras acabam por não sair. O medo engole-as e prende-as dentro de ti, o calor do momento esfuma-se por completo. Não me queres magoar, eu entendo. Mas deixa-me dizer-te que me proteges demasiado. "Eu já sou uma menina crescida, até já sei atar as sapatilhas sozinha". Sou tão mais forte do que julgas, meu amor. Há anos que espero por ti. Há anos que te amo a tempo inteiro quando tu apenas consegues amar-me em part-time. Isto quando consegues, claro. Há momentos em que sou a mulher da tua vida. Porém, como não há arco-íris sem chuva, há outros em que nem te importa a minha existência, aliás, incomoda-te. E custa-me
, admito. Mas custar-me-ia muito mais não te ter. Suspiro. Ainda há quem me diga para ter esperança. Até tu dizes que "um dia", "nunca se sabe . Mas lá porque um qualquer indivíduo conhece alguém que conhece alguém que amou e esperou durante imenso tempo até que um dia o objecto da sua afeição acordou certo que o amava (e viveram felizes para sempre), não significa que me vá acontecer o mesmo. Eles eram a excepção, eu sou a regra. E, sendo eu a regra, todo o tempo que esperei e espero por ti é, no fundo, tempo perdido. Perdido, perdidamente apaixonada. Já não dá, já não consigo crer em contos de fadas e histórias alheias. Para mim, there is no such thing as faith, and trust, and pixie dust. Tu até podes ser realmente um príncipe mas eu não sei se sou uma, quanto mais a tua princesa. Sou demasiado amarga para ser algo assim. Estou cravejada de defeitos e tenho o coração frio. No entanto, tu vais-me aquecendo a alma e limpando as lágrimas. Quais lágrimas? "As meninas grandes não choram". Parece que afinal não tenho assim tanta força, ela falha-me nas coisas mais simples, como acreditar. Parece que nunca conseguirei voar para a minha doce terra do nunca. A não ser, a não ser que consiga ser ainda mais forte. Sim, vou tentar ver o mundo com outros olhos, uns olhos mais cor-de-rosa e escassos em sentimentos negros. Talvez, "um dia" pois "nunca se sabe" eu me torne uma bela princesa. E aí, talvez possas por fim amar-me, para que a história de final de tarde que é a minha vida seja também uma excepção e simultaneamente um perfeito cliché, terminando com um vulgar "E viveram felizes para sempre". Talvez. Um dia. Nunca se sabe.

tu,

Por muita força que faça a caneta não corre, os pensamentos amontoam-se sem sentido e nada se aproveita. Sinto uma necessidade de escrever, de explicar o que me vai na alma, de deitar tudo cá para fora. Não consigo. O coração pesa cada vez mais e eu não encontro maneira de o esvaziar um pouco. Odeio quando isto me acontece. Tenho tanto para dizer e não consigo dizer nada. Estes bloqueios dão-me cá uma neura, céus. Apetece-me falar de ti até me doer a voz, quero salientar todos os teus detalhes, explicar ao Mundo como tu és. As saudades, os teus beijos, os sorrisos, os abraços. A felicidade no seu estado mais puro. Mas não consigo expressar nada. Bem diz Lobo Antunes que escrever é um processo complicado, que é preciso esperar até que venha a inspiração que, com alguma sorte, enche páginas sem fim para depois ter de limar tudo, acertar tudo, corrigir tudo até se obter uma simples frase perfeita. E esperar de novo. Ninguém disse que era fácil. Mas também ninguém disse que iria ser assim tão difícil. Custa, é certo, mas só assim consigo aliviar este pobre coração cansado. E enquanto espero sempre vou pensando em ti. Sempre acalmas esta minha alma. Aliás, veio-me agora à cabeça uma frase tua que me faz sorrir só porque sim.
- O que interessa é que estou contigo e o resto são papas de serrabulho.


P.S. A propósito , completa-se hoje um ano de palavras aqui , na terra do nunca .

errado,

'Ele é errado', sussurram. Descalça, sinto o chão gelado que me arrefece por dentro. Dispo o vestido, o tal que me deixa os ombros a descoberto, acabando estes por receber sempre um beijo ou uma mordida tua carregada do mais puro desejo. Sabes, quando não estás presente ouço leves sussurros que me tentam fazer entender o quão errado és, tentam trazer-me para a realidade, explicar-me que eu e tu não fazemos qualquer sentido. Se to contasse tomar-me-ias por louca. Não sou. Até conscientemente sei que não passas de um doce devaneio. Mas quando estás comigo todos os murmúrios cessam e sinto um sol dentro de mim. Por muito frio que sejas, por muito vazios que estejam os teus olhos. Aqueces-me a alma. Não me amas. Mas és o mais perto da felicidade que consigo chegar. E isso chega-me. Sei perfeitamente que és livre e mau. Sim, mau. Porque és livre mas queres-me o mais presa a ti possível. E eu presa fico. Presa pelo coração, presa pelo corpo, presa pela alma. Atada a ti de todas as formas possíveis. Não me amas, eu sei, consigo lê-lo nos teus olhos distantes. Mas essa verdade soa tão falsa. Se não me amasses... Se não me amasses não me percorrerias com os olhos, acariciando o meu rosto durante noites sem fim, quando julgas que já estou a sonhar contigo. Ou talvez nada disto tenha acontecido, talvez seja mais um sonho. O que é real é que és errado e ainda assim eu não importo. Apenas porque tantas vezes encontras em mim mais do que um corpo, conversando comigo até esgotares a voz, quando nos deitamos lado a lado, já saciados. És errado e já não sei o que pensar de ti. Nunca te entendi. 'Ele é errado'. O tipo certo de errado.

saudade,

Sinto o calor da tua respiração que me faz cócegas no rosto enquanto te abraço com força. Custa-me pensar em despedidas, partidas, adeus. Ouço o teu coração, encostada ao teu peito e tento conter a saudade que se antecipa e me tenta fugir pelos olhos. Apetece-me pedir-te, gritar-te que não vás.
Parece que estou desligada do resto do mundo. Consigo ver embora apenas distinga figuras. Consigo ouvir mas baixo, como se as palavras fossem apenas um murmúrio de fundo por trás de um diálogo principal num filme. Um diálogo que não existe. Não tenho bem consciência de onde estou ou mesmo de quem sou. Perdi a noção de há quanto tempo é que estou para aqui, sentada neste banco e fitando o vazio enquanto uma voz distante e fria parece repetir sempre o mesmo. Última chamada para o voo 597, última chamada para o voo 597. Não sei se se passaram segundos, minutos ou horas. Sinto que passou muito mais, sinto que desapareci no momento em que partiste. Afinal, como poderia eu alguma vez existir sem ser ao teu lado? Existir sem ti, que ideia absurda. Os aeroportos sempre me fascinaram, costumava resumi-los numa palavra: cheios. São lugares tão mágicos, tão carregados de emoções. Tantas despedidas e tantos reencontros. Tantas lágrimas de tristeza, de felicidade, de saudade. Mas neste momento, estranhamente, parecem-me vazios. Tudo me parece vazio e desejo ardentemente que este tudo não passe de um sonho, um sonho muito mau. Desejo acordar e descobrir que felizmente continuas deitado ao meu lado, quero olhar-te enquanto dormes nesse teu sono profundo até que acordes por fim para me encontrares a sorrir sem qualquer explicação. Julgas-me louca e sorris-me também. Não fazes ideia da quantidade de loucura que está por detrás do meu rosto sereno. Não nesses momentos mas agora, agora que te foste. Sabes que não tinhas o direito de mudar assim a minha rotina, a minha alegre monotonia. Não tinhas o direito de partir. Mas partiste após um leve beijo triste e não sei quando vais voltar.
Sinto que me falta um bocado. Quem me dera que estivesses ao meu lado.

os meus,

A relva faz-me cócegas e provoca em mim pequenos sorrisos ocasionais. Aqui, debaixo deste salgueiro, observo o céu azul e as nuvens que vão e vem, vem e vão. Não ouço nada senão o vento a dançar por entre as folhas ao som de uma música que me tem enchido a cabeça. Tenho andado tão exausta e atarefada que saboreio com felicidade este pequeno momento a sós comigo e com os meus pensamentos. Acabo por me lembrar daquilo que mais dor me causa, o passado. Não, não é bem assim, o que me atormenta não é bem o passado, mas sim o presente. Não é o ontem, é o hoje. E talvez também o amanhã. Talvez. Arranco as pétalas de uma qualquer flor que veio de encontro a mim. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer. Frustrada, atiro a inocente margarida para longe de mim, para algum lugar em que não a possa ver. Longe da vista, longe do coração. E quem me dera conseguir atirar também estas saudades para bem longe daqui, para longe de mim. Parece que as palavras sempre e eternamente perderam o sentido algures no tempo e eu sinceramente continuo sem saber como é que alguém se consegue esquecer de outro alguém assim. De um dia para o outro, da noite para o dia. Não sei como nem quero saber o porquê. Tenho vontade de vos abanar até que a vossa cabeça - não, a cabeça não - até que o vosso coração volte ao lugar certo. Apetece-me gritar aos céus que vocês eram meus. Toda a gente dizia que talvez nunca mais estivéssemos juntos, mas que, de certa forma, nunca mais estaríamos separados. Mentira, mentira, mentira. Eu só queria voltar a ter tudo o que outrora tive, só vos queria a todos de novo ao meu lado. Não queria perder mais ninguém. Já não sei se sou capaz de perder mais uma conversa, mais um abraço, mais um beijo na testa. Não sei se consigo aguentar a perda de mais um sorriso, a perda de mais um amigo. E é assim que, aqui, debaixo deste salgueiro, ao som do vento e dos pensamentos, observo o céu agora cinzento e as nuvens que vão e vem, vem e vão.

o passado,

Parece estranho que ao tropeçar numa caixa cheia de folhas soltas se vá de encontro a toda uma outra vida, a toda uma outra existência que parece tão distante que, pensamos, decerto nunca nos pertenceu. Não reconheço os momentos descritos em tais páginas nem tão pouco a caligrafia desastrada. Até que reparo melhor, tiro por momentos o meu chapéu revestido de superioridade e idade e tento ver, mas ver mesmo, procurar algo que me faça entender que palavras estranhas são essas. E é aí que, ao ver, mas ver mesmo, começo a reconhecer algumas coisas. Um ou outro pensamento, uma ou outra personagem, um ou outro sentimento. Entendo por fim. Sou eu, sou eu que estou perdida nesta caixa cheia de folhas soltas. Não, não sou eu mas sim quem eu já fui. E, de repente, bate uma dor cá dentro. Uma dor tão grande. Nunca me tinha apercebido de tudo o que tinha guardado, escondido. Já não me lembrava, já não me queria lembrar que pessoas que hoje passam por mim e não dizem nada, em tempos me fizeram juras eternas, me prometeram que estariam sempre presentes e que nada, nada nos iria separar. Retorno à frase já gasta, estou farta de promessas e de falsas esperanças, porque é que não podemos todos voltar a ser crianças? Parece impossível, é impensável sugerir sequer que tais pessoas já foram parte de mim. Não, de mim não, daquele eu que agora está perdido na tal caixa, cheia de folhas soltas. É engraçado que se possa tropeçar assim numa outra vida, numa outra existência. E ficam no ar as tuas perguntas. 'Porque é que as coisas mudaram? Estão melhor ou pior?' e a única certeza que tenho é de que não possuo a resposta a tal pergunta, se é que possuo alguma resposta. Já nem me lembrava do significado da palavra saudade, mas não creio que me volte a esquecer. É, uma vez aberto o armário das recordações e das memórias torna-se difícil fechá-lo. E a verdade é que sinto saudades. Minhas, tuas, vossas, nossas.

infinito,

Ela lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus lábios uniram-se num beijo profundo, infinito, quase imaterial pelo seu êxtase. Depois, descerrou lentamente as pálpebras, e disse-lhe, muito baixo:
- Adeus, deixa-me só, vai.
Ele tomou o chapéu, e saiu.

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. A caneta vai tentando, carregada de nostalgia, contar a nossa história ao papel. Sempre usei a escrita como catarse, mas só agora consegui encontrar a força necessária para falar de ti sem as lágrimas me turvarem a visão. As minhas coisas estão agora dentro de caixas. As tuas vão ficar para trás. Não consigo continuar a viver nesta casa. É demasiado tua, é demasiado nossa Ainda me é difícil entender porque partiste, abandonando todos os nossos sonhos. Mas como tu costumavas dizer, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Eu acabei por me habituar ao sofrimento, até porque este faz parte da espécie humana, faz parte de cada singular pedaço de mim. Não irias gostar de sabê-lo, mas continuo a não acreditar no conceito de felicidade. Felizes podem ser, talvez, os besouros. Esse conceito é tão utópico, meu deus. E eu nunca gostei de utopias. Desculpa, mas não tenho palavras para ti, não há palavras que consigam conter esta saudade. Posso apenas dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói. E dói de tal maneira que já pensei juntar-me a ti apesar de saber que não o posso fazer. Ficarias possesso de raiva se eu desistisse desta minha existência maltrapilha, incompleta, desfeita. É claro que poderia fingir-me louca, poderia fingir julgar que podia voar, poderia atirar esta minha suposta existência – maltrapilha, incompleta, desfeita – de uma falésia. Não, não poderia. Jamais me perdoarias. Mas também tu me falhaste numa promessa. Disseste que estarias sempre ao meu lado. Não estás. Não sei onde estás. Não sei para onde foste. Não sei nada. Acho que o melhor é deixar estar calado o meu coração.

- Adeus, deixa-me só, vai.
Ele tomou o chapéu, e saiu.
Na manhã seguinte, morreu.

P.S. Este texto possuí excertos das obras: Os Maias (Eça de Queirós); Antes de Começar (Almada Negreiros); Aparição (Vergílio Ferreira) e Pedro, lembrando Inês (Nuno Júdice) assim como de um artigo da revista Única.

Algumas proposições sobre crianças

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz.

Ruy Belo



A verdade é que estou farta de promessas e de falsas esperanças. Porque é que não podemos todos voltar a ser crianças?


P.S. A nova imagem presente no blog é da autoria do Nuno. Muitíssimo obrigada por todo o apoio e dedicação (':

one in a million,

Em tempos tentei prender pessoas a mim. Não sabia que a confiança pode demorar uma vida a ser criada, apesar de poder desaparecer em escassos segundos. Tentava dar-me totalmente, entregar-me totalmente. Só agora vejo que nunca me entreguei, nem a ti nem a ninguém. Aprendi que beijos não são contratos, presentes não são promessas. Acabei por entender que não sei nada desse sentimento, essa coisinha bonita a que gostam de chamar amor. Mas tu também não sabes, por muito que digas, por muito que grites aos sete céus que sim. Continua a gritar, força, diz a toda a gente que a amas, diz que ela é a mulher da tua vida. Tanto me faz, entendes? Já não quero saber, acabou. Porquê? Porque sei que ela não é nada para ti, porque sei que, por muito que digas que não, eu estive muito mais perto de amar do que tu alguma vez estiveste e porque é mesmo assim, tanto faz mesmo. Ninguém se preocupa com o que fazemos ou deixamos de fazer, com o que sentimos ou deixamos de sentir. Somos apenas marionetas do Destino, de Deus, daquilo em que quiseres acreditar. Hoje existimos, amanhã já ninguém se vai lembrar de nós. A verdade é esta, nem eu nem tu somos um num milhão. Somos apenas mais um num milhão. Até chegar ao fim.

história de amor,

E se ele vier? E quando eu o vir? As minhas pernas vão tremer, o meu coração vai acelerar, vou perder as palavras por instantes, vou fazer de conta que não o vi e tentar esconder todos os sentimentos que tenho dentro de mim, vou tentar ocultar o sorriso de felicidade estampado nos meus lábios e o brilho de alegria evidente nos meus olhos. Vou cumprimentá-lo com dois beijos e um Olá coberto com um sorriso tímido e desatento, não vou olhar para ele, vou virar a cara sempre que ele estiver ao meu lado. Não lhe vou tocar, e vou tentar não estar muito tempo com ele. Vou? Vou.
Mas e se ele amanhã voltar? Já não vou ser capaz de esconder o sentimento que, por sua vez, não vai parar de crescer. Não vou conseguir esconder a alegria nem o brilho nos olhos - aquele de quando se está apaixonada. Vou querer dar-lhe a mão. Todos vão perceber e começar a disparar perguntas. Quem é ele? Onde é que o conheceste? O que é que sentes? E eu não vou ser capaz de responder sem antes esboçar um sorriso tímido e corar tremendamente. Foi amor à primeira vista, tentarei explicar, ou melhor, à primeira mensagem. Vocês vão querer conhecê-lo para tentar entender se é o rapaz indicado, se poderá ou não ser o tal. É um doce de rapaz, dirão por fim, após profunda e delicada análise de todas as virtudes e defeitos. Até lhe vão dar uma alcunha, está-se mesmo a ver. Então vou-me poder deitar na relva abraçada a ele, sentindo o calor do Sol e a felicidade em mim. Parece que finalmente vou ter a minha porção de conto-de-fadas. Sim, acho que vou viver feliz para sempre com ele. Vou? Vou.



( este é para a Jénn e o seu garoto xP )

real,

Sozinha não estou. Sinto-me é só, verdade seja dita. Talvez deva meter um anúncio no jornal. Vende-se coração semi-novo, cerca de 6635530000 batidas gastas, bom preço. Vamos reinventar o amor? Reescrever as grandes histórias? Quero muito. Mas sozinha não consigo. Chega de príncipes. Chega de sapatos. Chega de sapos. Um pouco de realidade, por favor. Bem, tu eras real. Aliás, eras realmente o meu Mundo, eras aquilo que tinha de melhor e... Merda, está tudo no pretérito perfeito. Sabes o que isso significa? Talvez, mas entretanto o sol estava a perguntar-se se deveria afastar-se por um dia até o sentimento ir embora. Qual sentimento? Não há sentimento nenhum. Não o amava, amava o que tínhamos sido, o que eramos, o que fomos. Passado, o passado já não muda. O agora é uma dádiva, é por isso que lhe chamam presente. E o futuro, esse é tão incerto. Mete medo. Medo? Medo é gostar muito de ti e ter medo te perder.

palavras soltas,

Para sempre e mais um dia. Estou a tentar ser forte mas às vezes é difícil. Alguém que saiu e não tornou a entrar. À noite o silêncio dói. A felicidade era mais que um sonho. Não percebo nada da vida. Não tenho certezas de nada. Sentido não faz. A arte de ser criança, naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez. Ainda te lembras? Foi bom acordar e ver-te. Mas para onde vão os dias? E o tempo, também morre? A que é que sabem as cores? Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo. Luta-se por tudo. A maior aventura de sempre: nós. Mas quando consegues o que queres, será que ainda queres o que conseguiste? Nunca mais digas que me amas. No fim pensamos sempre no início. Se ainda és aquele que eu conheço. Só existias tu. Apenas a verdade. Apenas uma noite. As cores do arco-íris. Apagam-se dúvidas, é simples. É mesmo o fim. De uma escolha faz-se um desafio. Enfrenta-se a vida. Coragem, nasce um novo dia. Desistir é batota. E tu, acreditas? Não.

Então estala, coração de vidro pintado.

amanhã talvez,

Posso fechar o meu coração? Não deve ser assim tão difícil. Uma vez li um livro em que a personagem principal o tinha feito. Um amigo seu, que era um génio, concedeu-lhe um desejo. Ela pediu-lhe que lhe levasse o coração, o guardasse dentro de uma concha e o escondesse no fundo do mar. O génio assim fez e ela viveu assim durante muitos anos até que, inevitavelmente, como seria de esperar num conto destes, voltou a precisar dele e com meia dúzia de peripécias recuperou-o. Eu também gostava que um génio me levasse o coração e o escondesse. Ah, e até dava menos trabalho que a tal personagem, não o ia querer de volta, não ia precisar mais dele, sei bem que a minha vida não é um conto de fadas. Poder crescer sem coração, quanta facilidade. Não sofrer com as mudanças, as despedidas, os altos e os baixos. Não sofrer com os fins. Detesto fins. Detesto sobretudo quando horas e horas de conversa diárias se tornam em meia dúzia de minutos quando calha. E ainda mais quando o silêncio decide ocupar essa meia dúzia de minutos. Oh, e odeio o facto de hoje ser suposto ter estado contigo mas, mais uma vez, tu não poderes. E, acredita, odeio ainda mais, odeio muito mais quando vejo a nossa amizade dentro de uma bolha de sabão, tão bela e tão incrivelmente frágil, a subir em direcção ao sol e, de repente, a rebentar. A bolha rebenta, a nossa amizade jaz no chão. Realmente, detesto fins. A rapariga que perdeu o coração, era esse o nome do livro.

frio,

Abraço-te mas sinto-te frio. Seguro a tua face entre as mãos como se te tentasse prender a mim e deposito um beijo, um leve beijo triste, nos teus lábios. Não reages. Procuro o teu olhar mas tu fitas o horizonte cinzento e distante por detrás da janela. A tua respiração embacia o vidro que, como tu, está frio. Gelado. Acabas por desviar o olhar daquele horizonte escuro como se despertasses de um sonho querido. Sorris-me, mas o teu sorriso fica prisioneiro na boca, não chegando a alcançar os teus olhos que, vejo agora, estão vazios. Mas afinal o que se passa connosco? 'Nada', respondes-me, 'porque não existe um nós'. O meu coração falha uma batida. 'Sabes bem que um nós não faria sentido, já te disse, ela é que foi o amor da minha vida'. É verdade sim, já mo disseste e disseste-o tantas vezes que estas palavras não deviam ter agora qualquer efeito em mim. Escusado será dizer que continuam a magoar tanto ou até mais do que da primeira vez. Nunca me mentiste nem criaste ilusões. Agradeço-te isso. Às vezes dou por mim a pensar em deixar-te, em sair porta fora sem destino. Às vezes dou por mim a pensar que qualquer amanhã seria melhor que este hoje. Oh, quem é que eu estou a tentar enganar? Nunca conseguiria deixar o meu porto de abrigo. Sim, porque é isso que tu és, o meu porto de abrigo. Ninguém entende. Só eu sei porque é que continuo contigo. É que, sabes, foi contigo que descobri a melhor sensação do Mundo, pelo menos para mim. E por muito frio que estejas, por muito geladas que sejam as tuas verdades, eu serei feliz. Desde que possa adormecer abraçada a ti, tendo a certeza de que, quando acordar, vais estar ao meu lado.

a mudança,

Há algo que me acontece constantemente, sempre. Desde que me lembro que não me dou bem com mudanças. Ainda hoje quando tenho de datar alguma coisa escrevo janeiro e não fevereiro. E muito provavelmente só no fim deste mês é que me vou acostumar a escrever o mês correcto e o pior é que, quando finalmente acertar, o mês vai mudar de novo e vai tudo recomeçar. O que é que fica para trás? Um sem fim de palavras riscadas, por confusão, por distracção, por não me conseguir acostumar. Sou assim em tudo, sempre fui. Fico presa um pouco atrás no tempo, tentando desesperadamente acostumar-me ao novo enquanto, aos poucos, vou largando aquilo que desejava que ainda não tivesse acabado. E o sem fim de palavras riscadas continua. O verão transforma-se em inverno (ou será inferno?), os quinze tornam-se em dezasseis anos, o sol passa a ser chuva. E chuva, logo chuva que me deixa tão triste. Não sei, não faz sentido, mas para mim cada gota de chuva é uma lágrima. Mas quem poderia sofrer tanto ao ponto de chorar assim? Quanta dor por detrás da janela, quanta dor escondida na chuva. E agora até as estrelas me deixam triste, sabes? Desde aquela noite, aquele noite em que olhei para o céu - um céu com tão poucas estrelas - e olhando uma estrela pequenina, parecia encolhida, parecia apagada, parecia ter medo, perguntei, em voz alta, sem ter sequer consciência daquilo que estava a fazer 'E então estrelinha, diz-me, também tu estás a perder a graça que tinhas?' e deixei cair uma lágrima, mais uma que poderia cair do céu, mais uma gota de chuva. E desde essa noite, desde essa estrela, que até o céu é triste para mim. Tornaste-me assim, uma pessoa mais apagada, mais encolhida, parecendo ter medo. É que sabes, 'eu estou a perder a graça que tinha'. Desde que me lembro que nunca gostei de mudanças, muito menos de crescer. E o que é que fica para trás? Um sem fim de palavras riscadas.

Cinderela,

É verde. Sim, é uma rapariga e é verde. É verde assim como poderia ser azul ou roxa ou de outra cor qualquer. Mas não. É verde e ponto final. Nasceu assim. É assim que se vê. É assim que os outros a vêm. Um dia o pai dela entrou no seu quarto e olhando para aquela decoração, e olhando para aquela rapariga disse: Pareces uma lagarta nas couves. Ela nem ligou, o pai nunca a tinha entendido muito bem. Aliás, o pai entendia pouco das coisas, pelo menos daquelas que eram importantes. Ela com o tempo também deixou de o tentar entender. É que o pai era assim como as fadas madrinhas, tentava fazer tudo, mas acabava sempre por não fazer aquilo que era essencial, falhava naquilo que não devia falhar. Uma vez a fada madrinha apareceu. Muito apressada, muito atarefada. Sim, porque todas as fadas madrinhas vivem apressadas e atarefadas. Ela nem deixou a rapariga verde falar, viu uma lágrima no seu rosto e achou que sabia, que podia resolver tudo. Escusado será dizer que não podia. Mas ela não ligou e mil pós brilhantes voaram pelo ar. Apareceu uma carruagem, apareceram cavalos (que importava que estivéssemos no século XXI?), apareceu o mais belo vestido acompanhado de sapatos de cristal. 'Pronto, já podes ir ter com o teu príncipe'. Ela não teve coragem, não teve forças para admitir que não havia príncipe – que o príncipe que tinha existido a tinha deixado - não foi capaz de admitir que sim, era uma rapariga verde e estava sozinha. Vestiu o belo vestido e subiu para a carruagem. A fada madrinha ainda lhe acenou, um sorriso de felicidade desenhado na sua face, tal e qual os do seu pai. Ela partiu para parte incerta. Sem príncipe. E nunca mais ninguém soube dela. É que sabem, no fundo já não existem finais felizes. Apenas raparigas verdes, abandonadas, com sapatos de cristal.

um sonho,

Ainda pensas em mim? Já não se reconhece no espelho, já não consegue encarar ninguém, olha o mundo e só vê futilidade, sente que tudo perdeu a razão. Já não me reconheço no espelho. Que coisa horrível, olho-me no espelho mas não entendo, não sei quem me devolve o olhar. O professor de filosofia continua a dizer-me que não posso confiar em nada, que todas as minhas crenças podem ser mentira. Mas será que posso confiar nele? Talvez fosse melhor tirar o chapéu de filósofa e encarar o mundo como toda a gente ou quem sabe, talvez ignorar o mundo. Tantas perguntas. Às vezes acho que prefiro as perguntas dos testes, dos exames. Que estranho? Não, é que por muito difíceis que pareçam pelo menos todas essas perguntas têm resposta. E eu já não encontro respostas, só perguntas, só pontos de interrogação. Como quando estamos a sonhar e alguém não tem cara, só têm um ponto de interrogação no lugar onde deveria estar a sua face. E eu fico sem saber quem é, quem era… E ninguém me responde a nada. Por exemplo, ainda pensas em mim? Continuas a sentir-te bem quando estás comigo? Ainda encostas a cabeça no banco do carro e fechas os olhos quando ouves uma das nossas músicas? Ou será que agora a única pessoa que inunda os teus pensamentos e sonhos é ela? Oh, mas eu tinha tudo controlado, tinha o comando, aquele que desliga e liga os meus sentimentos por ti na mão. Mas sei lá, estava a demorar tanto a chegar aquele momento, o tal em que eu usava o comando para não me magoar, que eu acabei por deixá-lo esquecido por aí. E agora bem quero desligar-me de ti mas não sei do comando e não sei parar, não consigo parar de pensar em ti. Não me reconheço no espelho, o mundo está vazio, não devo confiar em ninguém, tantas perguntas, nada. Tudo o que vejo são homens em gabardinas pretas, pontos de interrogação no lugar do rosto, uma frase desenhada com fumo no céu, talvez por um avião. ‘Ainda pensas em mim?’, E eu sem me conseguir mexer, falar, gritar. Que silêncio.
Será que estou a sonhar ?