Paula Vicente,

E eu... eu é que assim arrisco minha vida, minha fama, para lhes valer em seus amores! - Todas as delícias deste adeus derradeiro - a mim mas devem! A mim que o amo - que a detesto... Oh!, não detesto, não. - Pobre Beatriz, tão boa, tão inocente, tão tímida!... Tu amas, desgraçada, e muito! Dele te apartam, para longe te levam aos braços de outrem! - Reclinada no peito do estrangeiro, mesquinha! - tu estremecerás com as aborrecidas carícias de um esposo indiferente; e o asco dos beijos de um marido que não amas, que em teu coração traíste já - te arrepiará os cabelos, te engulhará como peçonha! - Mas vais... E vives! E acabarás por te acostumar. - Sintra e suas árvores tão verdes, Colares e suas relvas tão viçosas, tão estreladas de flores - te parecerão como um sonho de infância - singelo de mais, inocente que enfada, para quem passeia pelos recortados florões de teu magnífico jardim italiano... Costurnar-te-ás à natureza afectada e factícia; e a natureza verdadeira te parecerá impossível. - E que importa! - As grandezas, o poder, a fortuna, a ambição, aí estão para compensar o perdido. - Mas aquele infeliz, que não tem outra glória, outros desejos, outra existência, outra vida, mais que esse funesto amor que o mata - desgraçado! - oh!, para esse é que todo vai o dó do meu coração. - Inexplicável martírio que é o meu! - Amo-o; e já não é possível que eu ame outro homem senão ele. Amo-o; e assim me empenho em seus amores com outra - com uma rival que devia detestar, e não detesto - quero-lhe antes, sirvo-a, deixo caluniar a minha para salvar a sua honra!... (Longo silêncio) E se alguém disser: - «Paula Vicente, filha do comediante, tu fizeste como os chocarreiros do palácio; serviste os amores de tua ama - e pelo pão com que matavas a fome, vendeste a uma princesa o teu amante.» - Di-lo-ão, meu Deus! - di-lo-ão: e eu ficarei infame... (Reflecte; e já resoluta.): Que o digam. Vil seria eu a meus olhos, se, para servir a este ciúme que me rala as entranhas, que me confrange os ossos - negasse a dois infelizes o amparo que só eu posso dar-lhes... (Fica por muito tempo com os braços cruzados, olhando fita para o sítio em que está escondido Bernardim Ribeiro.) Ei-lo ali está, ali que, escondido e protegido por mim, conta os instantes que espera... - E não é por mim que ele espera. - Ouço-lhe quase as pulsações impacientes do coração que lhe bate de ânsia... E não é por mim que ele bate. - Vê-la-á, e a mim mo deve. - Protestar-lhe-á de seu amor eterno... e eu serei testemunha do juramento que todas minhas esperanças destrói. - Ouvirá que é amado... saberá... receberá... - E eu, eu... - (Com amarga alegria.) Mas em poucas horas este pavimento há-de começar a mover-se, estes lenhos tomarão asas e fugirão por mares a fora com todos esses votos de fidelidade e ternura... Oh!, quem não suspiraria pelo dia de amanhã! - Eu. - Eu não sei que ele há-de ser mais negro ainda que o de hoje. - Eu, a orgulhosa filha do comediante, eu, que de frente ousaria lutar com a minha poderosa rival, eu não hei-de valer-me da sua ausência - não me aproveitarei de seus despojos. - O mundo que fale. A filha do comediante é grande a seus olhos.

Auto de Gil Vicente , Almeida Garrett

3 comentários: